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Artigo Original Original article

Fonte: Diálogos Junguianos/Jungian Dialogues. Vol. 3, n. 2: 12-40 (2018).

Cenas na areia: formas de expressão de uma realidade pré-verbal
Scenes in the sand: forms of expression of a preverbal reality

Ignez Carvalho Hartmann

Resumo

Conteúdos pré-verbais necessitam de especial atenção no processo terapêutico, devido à sua inacessibilidade e à tendência a serem atuados na relação terapêutica. A autora descreve etapas essenciais no desenvolvimento intrauterino, vinculadas à representação simbólica da unidade mãe-criança (uroboros, o elemento de água e terra/areia) e enfatiza a importância de experiências relacionadas ao corpo na cura de traumas pré-verbais. Cenas de areia que podem ser metáforas para o corpo permitem uma primeira expressão, ao nível simbólico, desses impensáveis conteúdos. O terapeuta precisa espelhar e conter essas mensagens, a fim de abrir novos caminhos de compreensão e de integração. Diversos exemplos extraídos da terapia de sandplay junto a crianças muito cedo traumatizadas ilustram a importância da familiaridade do terapeuta com questões pré-verbais ao nível da expressão simbólica, bem como ao nível da história de vida do paciente, a qual se inicia antes do nascimento.

Palavras-chave

trauma, sandplay, engrama, pré-verbal, pré-natal, perinatal, elaboração simbólica

Ignez Carvalho
Hartmann

é analista de crianças e adolescentes e musicoterapeuta. O ponto central de suas pesquisas
está baseado nos meios expressivos terapêuticos tais como: pintura, música e cenas de areia. É docente e supervisora no Instituto de Psicoterapia Analítica para Crianças e Adolescentes, em Heidelberg (Alemanha).

Introdução

O abismo entre a realidade intrapsíquica do paciente e a realidade externa na relação terapêutica pode ser a causa de muitos mal-entendidos. Estes se expressam, na maioria das vezes, nas situações transferenciais e contratransferenciais, como podem igualmente ser vivenciados nas atuações cotidianas semiconscientes. A realidade intrapsíquica inclui, por outro lado, também vivências internalizadas da fase pré-verbal que, muitas vezes, não conseguem ser expressas por palavras e, por consequência, não puderam ser simbolizadas e integradas no nível consciente – ou seja, sem acesso ao ego (Janus, 2013). Através das possibilidades posteriores, com a diferenciação da expressão verbal e na formação e desenvolvimento da percepção e do autoconhecimento – nas funções do ego: pensamento, sentimento, sensação e intuição, segundo C.G. Jung – estes engramas muito arcaicos podem aparecer em forma de lembranças e sensações corporais, sentimentos, imagens oníricas, criações artísticas e também cenas de areia, e só então podem se tornar comunicáveis (Reiter, 2002).

Desenvolvimento pré-natal

O desenvolvimento pré-natal nos mostra o “milagre da vida”. A menor célula, o espermatozoide, se funde com a maior célula do corpo, o ovócito, e no espaço de nove meses, numa incrível e genial velocidade, se multiplica em milhões de células! A partir da sétima semana de gestação, o embrião já começa a ter reações generalizadas de atração e rejeição. Entre a sétima e décima sexta semana de gestação, se desenvolve o órgão de equilíbrio, ou seja, essencialmente o ouvido interno. Na décima-sexta semana já podem ser observados os movimentos da mímica e a regularidade dos movimentos de respiração. Uma semana mais tarde observam-se padrões de movimentos mais complexos. Em resumo: até a vigésima quinta semana o ouvido, o gosto, a visão, a sensação de dor, frio e pressão já estão constituídas. Muito interessante é que a criança pré-natal (este termo é da autora) mostra uma relação intensa com a música, dando evidências de uma preferência pela música de Mozart e Vivaldi e ao mesmo tempo mostrando reações de rejeição à música muito alta, como o rock (Chamberlain, 1997 e observações de Tomatis).


Com a invenção do ultrassom, a relação mãe-feto tornou-se objetiva e visível: a criança pré-natal foi reconhecida como sendo sensível às reações do mundo uterino. Os hormônios do estresse são percebidos pela criança pré-natal através da placenta, o que chamamos de efeito do cordão umbilical. Até meados de 1980, a vida pré-natal foi tratada como um padrão vegetativo, sem se considerarem aspectos cognitivos e afetivos. As pesquisas atuais mostram o contrário: antes do nascimento, sensações de dor, preferências, interesse, aprendizagem, memória, comportamentos considerados agressivos, medo, choro, riso e afeição podem ser verificados por meio do ultrassom (Piontelli, 1996).

 

A relação mais íntima de todo o ser humano é a materna, sendo o útero o nosso primeiro lar. Se pudermos expandir a nossa percepção focando o olhar na criança pré-natal, perceberíamos que ela vive a relação materna em três diferentes formas: primeiramente, com experiências muito arcaicas da “mãe uterina”, ligadas a todas as vivências do desenvolvimento embriológico, numa relação completamente simbiótica; com a experiência do parto, a criança vivencia a mãe liberadora e extremamente cúmplice, numa dança mútua da experiência transicional mais relevante de suas vidas, e que será implicitamente internalizada, tornando-se posteriormente a base de todas as experiências transicionais; e, finalmente, a mãe se humaniza aos olhos do bebê e se torna visível. É esta a imagem de mãe que está mais próxima da nossa consciência. Essa relação primeva, tão diversa por natureza, se tornará a matriz inconsciente de todos os vínculos sociais posteriores. Ela será gravada na nossa memória implícita e no nosso sistema psicofísico. A vivência no útero materno se torna a experiência primeva do “estar no mundo”, assim como o nascimento revela a experiência primeva do “vir ao mundo” e, depois do nascimento, a completa dependência física e emocional para com a mãe ou cuidadora torna-se a experiência que será a base para o “ser visto e ver o mundo” (Janus, 2013). 

Hoje sabemos que a qualidade do vínculo que os pais e sobretudo a mãe grávida vivenciaram, irá se refletir na qualidade dos vínculos que serão transmitidos como herança psíquica aos seus filhos. A criança pré-natal em uma relação simbiótica vivencia o que a mãe grávida vivencia, embora sua capacidade esteja muito aquém de diferenciar, distinguir e nomear vivências de medo, de choque, de desorientação e de raiva.


Os conhecimentos teóricos e práticos da teoria das relações objetais, as pesquisas com os bebês, o embasamento das teorias do vínculo (Bowlby) e dos processos de mentalização (Theorie of Mind) nos remetem a questões especulatórias das experiências vividas pela criança pré-natal na sua jornada antes do nascimento e que posteriormente virão à tona ao longo da vida.

Os efeitos posteriores das vivências de estresse no período que precede, acompanha e sucede o nascimento foram amplamente pesquisadas por especialistas do psicotrauma. O suposto “fetal programming” (Van der Bergh, in Plagemann, 2012) e o efeito a longo prazo de carências vividas neste período foram também amplamente confirmados.

Estes psicotraumas extremamente precoces se espelham em registros corporais, que se traduzem em vivências sensório-motoras mais primevas, constituindo a memória implícita. Somente através da percepção das sensações corporais, das emoções, das imagens internas e dos impulsos de movimento é possível desvendar estes episódios psicotraumáticos. Eles podem ser conscientizados em dois passos: primeiramente através da atualização das imagens e sensações internas; e posteriormente diferenciando-as e avaliando-as de uma maneira emocional e cognitiva (Janus, 2009, p.89). Este processo gradativo de conscientização dos episódios psicotraumáticos pode dar uma ideia, por exemplo, de como se constituíram os germens dos mecanismos de defesa, tais como os processos de dissociação ou a identificação com o agressor, que são primitivamente formados em razão da necessidade de uma sobrevivência emocional. Somente dentro de uma dinâmica empática, considerando as experiências mais arcaicas, é possível compreendê-los e por fim transformá-los.

Psicologia analítica e a dimensão pré-natal


Em 1949, com a publicação do livro de E. Neumann, História da origem da consciência, foi proposta a metáfora do estado urobórico de consciência para descrever a origem do desenvolvimento da personalidade da criança. Este seria o estado mais arcaico da psique, no qual um ego rudimentar estaria imerso num padrão de consciência fusional com sua “mãe-mundo”. É preciso realçar que Neumann, até então, não havia explicitado a semelhança do símbolo do Uroboros e as formas do desenvolvimento embriológico.

Na Alemanha, a analista U. Eschembach (1985), que foi professora e supervisora do Instituto C.G. Jung de Stuttgart e trabalhou com crianças e adultos na década de 1980, avançou mais um passo e colocou surpreendentemente, pela primeira vez, o paralelo entre o arquétipo da totalidade e o desenvolvimento embriológico: “a moderna embriologia confirma que o desenvolvimento psíquico dos primórdios do ego acontece já no útero, estabelecendo assim o ‘primeiro gérmen’ do ego com suas vivências (frühengramm)”. As pesquisas atuais da Neurociência e da Embriologia confirmam a realidade destas experiências pré-natais. Um olhar mais profundo nas dimensões do tempo antes, durante e depois do nascimento possibilitam uma descrição mais realística das imagens arquetípicas e do inconsciente coletivo. Um exemplo concreto podemos observar nas visões de C.G.Jung, relatadas em seu livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Em uma destas visões ele descreve a entrada em um caminho muito estreito, que iria possivelmente dar num poço profundo, experimentando assim a sensação de algo completamente indeterminado: “e o mundo das águas, onde tudo o que vive está suspenso e flutua, a origem da alma e de tudo o que vive, onde eu me torno inseparável de mim mesmo e do outro1... onde eu experimento o outro em mim e o outro como eu mesmo. Trata-se do inconsciente coletivo, que não reside num sistema pessoal, mas se traduz numa objetividade de abertura coletiva mundial” (Jung, 1971, pp.3ss). O que existiria de mais arquetípico para a humanidade que não seja a nossa própria origem biológica de gestação?


Em vários contextos culturais encontramos imagens arquetípicas. Peter Sloterdijk analisa em sua trilogia Sphären (Esferas), com o título do primeiro livro Blasen (Bolha), a ontogenia da origem da percepção, do conhecimento e da consciência, sabendo que vários esboços e modelos históricos da humanidade só podem ser criados a partir da própria vivência corporal individual, no seu próprio desenvolvimento. Ele também comenta que na cultura tradicional chinesa, a vida de um indivíduo começa a partir da concepção (Evertz, 2014, pp. 636ss) e não somente a partir do nascimento.

A dimensão pré-natal na Psicoterapia


O tema da dimensão pré-natal na psicoterapia desenvolveu-se ao longo de cerca de cem anos, notadamente com O. Rank em 1924, com seu livro inovador O trauma do nascimento. Um pouco mais tarde e juntamente com S. Ferenczi, foi coeditado o livro Desenvolvimento da Psicanálise, onde eles preconizam a necessidade de um processo analítico modificado, reconhecendo que o aspecto verbal não abrangeria todas a vivências internalizadas. Neste sentido, as vivências pré-verbais requerem igualmente uma tratamento modificado, ou seja uma "vivência analítica" na qual a sensação corporal desempenha um papel central. Aqui não se trata de experiências reprimidas, mas de experiências arcaicas esmagadoras que foram dissociadas muito cedo e por esta razão não teriam acesso consciente, e portanto não poderiam ser “mentalizadas” (Fonagy, 2011). Esta reflexão culmina com a ruptura com Freud, da mesma maneira que aconteceu com C. G. Jung. Consequentemente, a psicanálise tomou uma direção completamente diferente. Somente após a Segunda Guerra Mundial, este tema foi retomado, especialmente nos Estados Unidos pela Psicologia Humanista – como A. Janov, S. Grof, W. Emerson, etc (Janus, 2013).

 

Mais tarde, na Europa, o psicanalista suíço-alemão H. G. Graber fundou em 1971 a Associação Internacional de Estudo da Psicologia e Medicina Pré-natal e Perinatal (ISPPM), de caráter multidisciplinar. Graber enfatizou um aspecto muito importante da unidade do corpo-ego e seus atributos circundantes, como o cordão umbilical e a placenta. Nota-se que o corpo-ego sofre uma transformação entre um corpo que primeiramente flutua no líquido amniótico e o corpo que após o nascimento perde seus atributos anteriores pela separação da placenta e o corte do cordão umbilical (Graber, 1966). Ou seja, esta experiência foi vivida por toda a nossa espécie, sendo assim a junção entre o biológico e o arquetípico. Sendo que, a diferença que caracteriza o aspecto arquetípico seria sua origem virtual. Como a estrutura dupla da luz que por vezes é onda e por vezes energia.

 

No nível pré-verbal não se pode falar em conflitos, porque conflitos demandam um ego minimamente maduro. São sensações esmagadoras, imagens, que correspondem a vivências internalizadas de conteúdos muito arcaicos, que são chamados de registros mnêmicos (imprints) (Wilhelm, 1992). Estas primeiras experiências relacionais ocorrem antes do desenvolvimento da linguagem, como as vivências pré-natais, perinatais e pós-natais e podem ser reveladas através de sensações corpóreas, em sonhos, visões, em desenhos elaborados inconscientemente, pinturas muitas vezes de carater abstrato, esculturas, etc, como também nas cenas que são produzidas inconscientemente nas caixas de areia.

Implicações para psicoterapia


Trauma ou déficits nas primeiras experiências de vínculo ou relacionais podem levar as pessoas, posteriormente, a grandes dificuldades de comunicar verbalmente seus estados emocionais internos. Desconectados de si mesmos, não são capazes de compreender, descrever e diferenciar estes estados, nem em si mesmos nem nos outros. As experiências traumáticas muito precoces permanecem diretamente em sensações corporais indesejadas, na baixa autoestima ou se manifestam em relacionamentos difíceis. Tanto no nível psicológico, como no relacional, estas podem ser vividas ou expressas em imagens e fantasias.

 

As evidências de um psicotrauma muito precoce se manifestam nos bebês, por exemplo, como gritos excessivos, apatia ou agitação forte, perda de peso, distúrbios gastrointestinais, falta de sono, irritabilidade severa, distúrbios cognitivos, transtornos no nível cognitivo como déficit de formação de conceitos, verbalização, imaginação e um baixo QI em geral (Schindler, 1982 pp. 36ss).

 

Posteriormente, os sintomas mais significativos em conexão com estes psicotraumas muito precoces podem ser observados na ansiedade generalizada, no medo do escuro com ataques de pânico, no medo de asfixia, nos pensamentos suicidas (especialmente quando houve intenção de aborto por parte da mãe na gravidez) e nos fortes desejos regressivos mesclados pelo medo generalizado do abandono (Janus, 2013).

A capacidade de simbolização das imagens internas em cenas de areia requer a formação distinta do si mesmo e do outro . É importante acrescentar que aqui estou me referindo aos conceitos da Theory of Mind de Fonagy1 e não segundo as teorias de C.G. Jung. A base para isto, segundo esta teoria, é a capacidade de mentalização. O conceito de mentalização, segundo Fonagy, é baseado na capacidade de perceber sentimentos, necessidades, etc, em outras pessoas e em si mesmo como distintos e, ao mesmo tempo, poder se autoperceber através dos olhos do outro. Isto pressupõe reconhecer os proprios afetos num processo de autorregulação através da atualização da vivência da própria elaboração simbólica e, posteriormente, completá-la com a verbalização. O processo de mentalização se inicia muito precocemente na relação mãe-bebê ou cuidador e se desenvolve através do compartilhamento de atenção e das perspectivas individuais (Fonagy, 2011).

 

Este déficit é, por assim dizer, retransmitido inconscientemente e de maneira transgeracional, com implicações também na transmissão da qualidade de vínculo experenciado e em sua trasmissão inconsciente aos filhos (Bolbwy, 1969). Por exemplo, uma mãe que viveu um vínculo ambivalente com a própria mãe vai, provavelmente, oferecer um vínculo ambivalente ou simbiótico à criança. Ela terá dificuldades em marcar a separação entre o “eu e o outro”, ou seja entre ela mesma e o seu filho. O processo de mentalização é mediado “intermentalmente” no nível mental e neurológico e se estabelece, progressivamente, com o ato de pensar, sentir e fazer no cotidiano. Na psicoterapia, a capacidade de mentalização do paciente é mais bem promovida quando o psicoterapeuta assume uma atitude mental de discernimento entre ambos, focando seus pensamentos, percepções e sentimentos no momento presente e fornecendo, desta maneira, uma base segura na facilitação e na exploração dos seus estados internos ao paciente. Não se trata aqui de apontar ou interpretar estes conteúdos internos e sim de proporcionar este processo de mentalização, respeitando o ritmo e os limites de cada paciente. Basicamente, o mundo da imaginação oferece uma boa plataforma para o processo de mentalização, que pode ser vivenciado no setting da terapia do sandplay como um “espaço livre e protegido” (Kalff). Hoje sabemos, através da neurociência, que o “agir” nas imagens internas se manifesta exatamente na área do cérebro que equivale à realidade. Neste sentido, a caixa de areia oferece o papel intermediário, como um painel de projeções de vivências internalizadas. A criança encena sua realidade e isto ocorre em dimensão simbólica e individualizada. O papel do terapeuta no sandplay seria o de acompanhar a criança no seu caminho vivencial, buscando espelhar e apoiar estas vivências internas na interação com as figuras nas cenas de areia, de “modo analógico” (Fonagy, 2011). O psicanalista alemão Dr L. Janus, que foi um dos presidentes da Associação Internacional de Psicologia Pré-Natal, afirma que o ego começa a se desenvolver a partir do útero materno, através de vivências extremamente precoces, internalizadas em forma de engramme (Frühegramm). Estes engrammes constituiriam o “núcleo-afetivo”, que posteriormente é revelado através de uma forma simbólica, de sensações corpóreas, imagéticas e até mesmo de conceitos abstratos (Janus, 2000, p.18).

 

Cenas de areia como formas projetivas de uma realidade pré-verbal podem revelar, surpreendentemente, como estes engrammes precoces, frutos de um déficit na regulação dos afetos ou nas vivências do espelhamento, se manifestam. Para que este “núcleo-afetivo” possa ser reconhecido e compreendido, é necessário estar atento às expressões corporais, às expressões imagéticas da cena e às expressões verbais resultantes tanto de processos transferenciais como descritivos das projeções nas cenas de areia. O foco mútuo na observação das cenas (aqui a caixa de areia como o objeto intermediário sustentado por uma atitude terapêutica empática) possibilita a abertura de novas janelas no processo de mentalização e, consequentemente, de elaboração simbólica. Segundo Byington (2008), o símbolo é estruturante na psique. Portanto, a elaboração simbólica resultaria numa reestruturação psíquica. O papel do terapeuta se revela, então, através da função cognitiva e emocional do “Containing”, segundo W. Bion. O paciente, construindo sua cena de areia, atualiza seus engramas traumáticos que se cristalizaram em forma de “núcleos afetivos”. Diante desta constelação, o terapeuta reconhece este “núcleo-afetivo”, fazendo uma releitura simbólica de conteúdos apresentados nas caixas de areia. Este processo é extremamente importante para compreender o paciente, sobretudo nas vivências de caráter pré-verbal que, justamente, por seu caráter de difícil comunicabilidade, não puderam ser compreendidas e integradas.

Cenas de Areia: expressões de uma realidade pré-natal


A renomada psicoterapeuta do sandplay E. Weinrib menciona em seu livro: Images of the Self (1983) que Dora Kalff nesta época hipotetizou que algumas cenas de areia poderiam conter imagens metafóricas do corpo:

Kalff começou a acreditar que os elementos materiais do sandplay agiam como uma espécie de metáfora para o corpo. Ela encontrou confirmação para essa hipótese quando pacientes que estavam fisicamente doentes fizeram na areia representações pictóricas de órgãos doentes, cuja forma eles desconheciam. (...) O sandplay funcionava como um mediador não verbal entre o impulso interno e a realidade externa (Weinrib, 1983).

A psicoterapeuta U. Eschenbach nos convida a ficarmos atentos às pinturas ou a alguns exemplos de rabiscos, cujo conteúdo não poderia ser deduzido racionalmente. Algumas dessas expressões poderiam revelar o “núcleo afetivo” de um trauma de natureza pré-natal:

A amplificação de um “autograma simbólico” destas expressões, em contrapartida, nos faz reconhecer um sentido onde, no decorrer do diálogo terapêutico, podemos observar uma evidente integração entre o transporte dos níveis inconscientes para a consciência do ego. Particularmente interessante neste sentido, são as observações das expressões imagéticas de adultos, que em fases de regressão terapêutica mostram conteúdos que nos fazem lembrar engrammes muito precoces da fase intrauterina, a respeito dos quais na análise verbal não haveria qualquer possibilidade de consciência. Através das pesquisas do material biográfico nesta fase muito precoce, pode se constatar e tornar evidentes os paralelos entre esse material biográfico e as expressões imagéticas (Eschembach, 1985, p. 94).

A amplificação destes “autogramas simbólicos” nos faz pensar no setting do sandplay como a caixa de areia se tornando uma espécie de “útero simbólico”, um vaso alquímico onde se reconstroem tecidos biográficos que não foram “costurados” pelo tempo... Os símbolos da areia nos remetem a dois aspectos da nossa origem ternária (biológica, psicológica e espiritual): a areia em si, por sua disponibilidade, sustentabilidade e seu caráter indestrutível cristaliza o arquétipo da Grande Mãe; o setting do sandplay inclui também o elemento água, que é sensorialmente experimentado na areia molhada. Em quase todos os mitos de criação, o elemento água aparece num paralelo à origem do mundo e da vida. Nosso desenvolvimento embriológico acontece no “ambiente amniótico”. Ao se construir uma cena de areia estamos, por assim dizer, refazendo os nossos tecidos biográficos de uma maneira metafórica. Filogenética e ontogeneticamente.

 

Para nós, terapeutas do sandplay, podem ser colocadas as seguintes perguntas:


1. Como podemos diferenciar, nas cenas de areia, projeções de engrammes precoces oriundos da memória implícita dos pacientes, dos conteúdos biográficos de uma fase de vida posterior?


2. Como é possível, através do processo de transferência e contratransferência, aguçar o olhar simbólico, no sentido de perceber um conteúdo referente a um “autograma simbólico” da experiência pré-verbal ou até mesmo pré-natal e, desta forma, abrir novos caminhos empáticos na transformação e integração destes conteúdos traumáticos até então indizíveis?


3. Qual seria a implicação e o direcionamento das respostas às perguntas anteriores, no processo terapêutico?


4. Neste sentido, o aprofundamento nas questões do estado interno da mãe gestante se tornaria um aspecto relevante no levantamento de dados da anamnese, tanto na psicoterapia infantil como na do adulto. Como poderíamos aprofundar este aspecto na prática terapêutica?


Seguem agora alguns exemplos vividos na minha prática terapêutica, que se tornaram, através do tempo, os bastiões destas reflexões teóricas e desta pesquisa pessoal. Os nomes dos pacientes foram trocados em respeito à sua respectiva privacidade.

1 - O núcleo afetivo traumático do prematuro


Lea e as sensações corporais com a ruptura do vínculo


Eu conheci Lea no meu consultório com a idade de seis anos. Sua mãe descreve sua filhinha como muito chorona. O motivo da consulta foi um comentário de Lea, em que ela afirma o desejo de morrer. Na escola maternal, ela não consegue se “desgrudar” da professora e mostra comportamentos regressivos. Por causa de uma gestose, a gravidez teve que ser interrompida. Os pais estavam em viagem ao exterior. Lea nasceu na 32ª semana de gravidez, pesando 1.200g. O nascimento foi relatado pela mãe como muito traumático. Em seu relato percebo que seu rosto permanece quase imóvel e sem afeto. Os pais, diante destes sintomas, estavam muito inseguros na decisão da escolarização de Lea e pensavam até em esperar mais um ano para colocá-la na escola primária. Em meus sentimentos contratransferências emergem sensações confusas mescladas com um forte sentimento de abandono. A relação de Lea e sua mãe me parece extremamente emaranhada e simbiótica. Normalmente, na anamnese vejo primeiramente a criança acompanhada, geralmente pela mãe, embora sempre realço que a presença do pai seja imprescindível. Desta vez, a mãe de Lea aparece no meu consultório sozinha.

 

Somente na segunda sessão vejo Lea acompanhada de sua mãe. Trata-se aqui de uma menininha loura muito frágil, com óculos coloridos e engraçados. Lea fala muito baixinho e controla constantemente o rosto de sua mãe. Sem a presença da mãe Lea se transforma lentamente, sua voz tem um outro volume. Ao ver em minha sala os desenhos de outras crianças, ela, num impulso espontâneo, me diz que gostaria também de pintar seu autorretrato (ver a imagem abaixo). Sua pintura revela um bom nível cognitivo, mas uma carência emocional evidente. Logo após desenhar o esboço de seu corpo, começa a pintar as pernas, braços, estômago e até mesmo o pescoço em azul, corrigindo em seguida a cor do seu corpo em preto, completando com pequenas pérolas pretas nas duas pernas, que poderiam sugerir lágrimas. O rosto me parece também sem afeto, os olhos com um aspecto meio vazio, ligeiramente voltados para o lado esquerdo.

Sobretudo, o que mais me choca é a diferença entre o tamanho e a cor dos dois pés. Seu pé esquerdo é quase duas vezes maior do que o direito e foi também pintado de azul, a cor com que pintou inicialmente todo o seu corpo. Sabemos que a cor azul, na simbologia, pode corresponder à cor da água. Estaria Lea me dizendo que ela ainda se encontra com “um pé no ambiente amniótico”? Na sexta sessão de terapia, ela diz logo no inicio: "Hoje eu preciso de muita água" e usa o elemento extensivamente até que caixa de areia se torne um verdadeiro lamaçal. Então, com a mão direita, ela abre um caminho, da esquerda para a direita, até chegar no centro da caixa, enfatizando desta maneira a sua cor azul. Dirigindo-se à prateleira, descobre a miniatura de um bebezinho dormindo. Em seguida, ela o coloca suavemente num berço, no meio da caixa de areia. Com pedras, ela rodeia o berço no lado direito e comenta: "O bebê está congelando". Imediatamente, no intuito de “corrigir” esta sensação corpórea incômoda, recorro a um minúsculo papel amarelo com o qual Lea possa cobrir o seu bebê. Ela sorri satisfeita e eu lhe pergunto se agora o bebê se sente melhor. "Não", responde subitamente, "ele precisa da mamãe e do papai". Desta vez ela mesma se dirige à prateleira e escolhe as figuras correspondentes, colocando-as no lado esquerdo do berço. "Todo mundo aqui mora na água", acrescenta. A figura da mãe carrega uma criança pequena em seus braços, a figura do papai parece estar olhando em outra direção.

E no espaço de alguns segundos a mímica de seu rosto se transforma, ela parece muito pálida e me diz baixinho "Eu esqueci alguma coisa..." Da prateleira ela tira nove mosaicos pretos (embora outras cores estivessem disponíveis) e constrói um tapete preto sob o berço. Ela olha para mim com tristeza: "O bebê está com fome, mas a Mama não sabe disso..."Esta cena me tocou profundamente e eu experimentei novamente na minha contratransferência sentimentos de abandono indefiníveis.

A composição desta cena com um bebê no bercinho numa superfície aquosa, o comentário de Lea sobre o desconforto físico do bebê, de sentir muito frio (sabemos que o sentir frio é uma sensação corpórea muito comum dos prematuros), regados até pelo comentário que revela a ruptura da relação da mãe-bebê “no parto traumático em que não foi possível a acolhida materna de seu bebê nesta sua primeira experiência de “vinda ao mundo”, são evidentemente indicadores de uma constelação do “núcleo afetivo” de um engrama precoce resultante da gestose e do parto de emergência.

 

Pra mim, é como se Lea pudesse, através de mecanismos projetivos, revelar nesta imagem interna detalhes de uma memória implícita de suas primeiras vivências corporais emocionais e da ruptura do vínculo oriundo do seu nascimento traumático.

 

Na psicoterapia infantil, além do relacionamento quaternário (C. G. Jung) entre os níveis conscientes e inconscientes do terapeuta e do paciente, também somos confrontados com um terceiro nível que se sobrepõe e que corresponde às camadas consciente e inconsciente dos pais (especialmente a mãe, que traz seus filhos para a terapia). A função de containing (W.Bion) do terapeuta permite, mediante o material terapêutico das cenas de areia que se formam inconscientemente, “localizar” o núcleo afetivo traumático projetado. Com a complementaridade das relações contratransferências, os comentários do paciente e a verificação dos dados biográficos colhidos na anamnese, é possível estabelecer novos fios condutores para o processo terapêutico. A partir desta cena tão marcante, resolvi intensificar as sessões com a mãe de maneira que ela própria pudesse reviver e integrar sentimentos até então reprimidos, diante de seu primeiro parto tão traumático. Sabemos que, segundo C. G. Jung, os sentimentos não integrados dos pais geram sintomas na criança. A partir desta intervenção focada no acompanhamento das vivências traumáticas e reprimidas dos pais, foram possíveis uma abertura e uma postura mais empática destes em relação à sua filhinha. Com esta sucessão de intervenções terapêuticas, pôde se observar claramente uma mudança no comportamento de Lea, e os pais aliviados e mais seguros optaram pela escolarização regular de Lea.

2 - O núcleo afetivo traumático da criança adotada


Petra e o núcleo afetivo da dilaceração entre duas mães


A maioria das crianças adotadas, apesar da necessidade inata do vínculo, mostram em geral uma desconfiança pronunciada em relação aos pais adotivos e ao mundo em geral. Em face dos núcleos afetivos traumáticos que foram vivenciados muito precocemente em forma de feridas emocionais profundas, percebemos em geral dificuldades específicas na busca da própria identidade. Nós, psicoterapeutas infantis, sabemos que cada segunda criança adotada revela sintomas psíquicos e problemas comportamentais. Eu pude vivenciar um exemplo muito impressionante no meu consultório, numa sessão psicoterapêutica com Petra. Ela tinha acabado de completar seus cinco anos de idade. A mãe adotiva estava muito preocupada porque Petra apresentava, além de uma enurese primária, um comportamento extremamente agressivo e de oposição. Um modo de vínculo “desorganizado”, típico de crianças com traumas muito precoces, foi observado na anamnese.

 

Petra foi adotada com a idade de um ano e meio, vinda de um orfanato do Nepal para a Alemanha. A decisão do processo de adoção foi tomada após o casal se submeter a várias tentativas de gravidez, sem qualquer sucesso.

 

A mãe adotiva relata que no orfanato a entrega da criança foi realizada de uma maneira extremamente rápida, a pedido dos cuidadores do Nepal. Na Alemanha, o processo de adoção é muito dificultoso, por isso muitos casais vão buscar em orfanatos do exterior a possibilidade de adoção, sendo que muitas vezes o “tráfico” de crianças que são “compradas” nestas circunstâncias ainda é uma prática absurdamente atual. A mãe relata um certo incômodo nesta situação e um mau pressentimento.


Ela relata que sua filha, ao chegar à Alemanha, se mostrou muito quieta, quase apática. Aproximadamente oito meses depois de terem chegado, Petra começou a apresentar sintomas de comportamento oposicional, enurese, dificuldades sociais na escola maternal, hiperatividade e déficit de atenção.


A mãe adotiva era filha única e estava ainda vivenciando um luto patológico pela perda de seu pai havia três anos. Ao mesmo tempo se encontrava numa situação extremamente delicada, sendo forçada a se ocupar de sua própria mãe, que sempre fora muito frágil e quase infantil. Esta situação, relatou, conheceu desde sua infância. Eu suponho que sua mãe fosse também traumatizada pelas circunstâncias da guerra aqui na Alemanha, que foram transmitidas transgeracionalmente. Diante desta situação familiar complexa, a mãe adotiva se encontrava emocionalmente sobrecarregada.


Além destes detalhes importantes de sua história, ela relata que anteriormente trabalhou em um banco durante oito anos, onde conheceu o seu marido que se tornou então diretor deste banco. Sentindo-se completamente afastada de seus talentos e de seus ideais, decidiu se tornar professora de yoga, o que lhe dava uma certa estabilidade emocional diante dessa situação familiar consternadora. Podemos assim dizer que o yoga, através de algumas aulas que dava por semana, era a sua fonte estabilizadora. Petra tinha também um irmão adotivo dois anos mais velho, vindo igualmente do Nepal e com problemas de hiperatividade. Mas, contrariamente a Petra, era muito “agarrado” à mãe. A adoção destas crianças me pareceu como uma tentativa de encontrar o próprio sentido de sua vida.

 

No meu primeiro contato com Petra, fiquei impressionada com sua vivacidade mesclada com um jeito meio arrogante e dominador, que contrastavam com sua tenra idade. Em meu consultório, sem nem mesmo me olhar, se dirigiu diretamente às caixas de areia.

 

Normalmente, na técnica do sandplay fazemos primeiramente um relaxamento prévio que consiste na conscientização corporal e da respiração. Logo depois passamos a uma sensibilização tátil de ambos os tipos de areia (seca e molhada), para facilitar, através da função transcendente, o surgimento de conteúdos e imagens internas.


E preciso ressaltar que, na polaridade simbólica, a areia molhada oferece a possibilidade de construir cavernas, muros, pontes etc, enquanto a areia seca é mais fluídica e leve. O fato de se optar por uma ou outra areia já oferece alguns critérios na avaliação do diagnóstico.


Às vezes, pode acontecer de algumas crianças não conseguirem decidir entre as duas caixas. Isto é um aspecto muito importante e só pode ser analisado profundamente se incluirmos os aspectos contratransferências e biográficos.


No caso de Petra não foi possível fazer esta introdução técnica do sandplay. Diante deste comportamento impulsivo, digo a Petra que ela pode experienciar as duas areias, mas não misturá-las e logo em seguida pode optar por uma caixa onde ela construirá a sua cena. Ela me responde imediatamente que gostaria de “brincar” com as duas e começa a esboçar uma caverna na areia molhada. Logo em seguida se dirige à prateleira para buscar as miniaturas e, para minha surpresa, começa a montar a sua cena, não na caixa, mas nas bordas das duas caixas, o que é em geral muito incomum.


Poderíamos à primeira vista interpretar esta atitude como um comportamento oposicional, no entanto Petra me parece surpreendentemente concentrada e  sabendo exatamente quais figuras escolher.


A primeira miniatura escolhida é de uma gatinha com seu bebê, que Petra coloca gentilmente numa conchinha. Logo em seguida, em conchas separadas, escolhe o pai tartaruga e a mãe com um bebê tartaruga, ambos em uma concha e do lado duas tartarugas sem as conchas e que representam os filhos maiores da família. É interessante notar que na foto podemos visualizar esta família e a caverna construída como “pano de fundo” e um lago azul.

O que me tocou imediatamente foi a presença de duas mães e bebês diferentes, ambos colocados numa concha (primeira e terceira concha da esquerda para a direita).


Simbolicamente, numa leitura convencional, a concha corresponderia ao órgão feminino. Numa amplificação simbólica com ênfase no aspecto biográfico de vivências pré-verbais, poderíamos pensar metaforicamente na escolha da concha como o objeto que contém mãe-bebê, como o estado placentário em que o útero exerce o papel do vaso alquímico. Ou seja, é possível se constatar a junção do aspecto embriológico, acoplado a uma constelação do arquétipo da grande mãe. A função estruturante do símbolo através da escolha inconsciente das miniaturas lhes dá a possibilidade de reconstruir sua própria história, no sentido da presença de duas mães tão diferentes: a gata e a tartaruga. Ao mesmo tempo, ambas mãe-bebê são representadas dentro de um objeto que por seu formato se torna acolhedor.


Aqui é interessante salientar que, na representação aritmética da civilização Maia, o número zero é simbolizado também por uma concha. Se observarmos a simbologia dos números, podemos dizer que o número zero teve o seu aparecimento na Idade Média, transformando assim toda a aritmética, espelhando um novo nível de consciência para toda a humanidade. Arquetipicamente, o número um corresponde ao início, ou seja, ao nascimento ou à parte “visível” da nossa existência, enquanto que o número zero seria o precedente, a parte invisível. Se pensarmos nos tecidos biográficos, poderíamos imaginar a representação do zero como a parte invisível na nossa história, o milagre da gestação que não é acessível aos nossos olhos. Isto me remete a repensar a leitura simbólica vigente e abre novos caminhos no aprofundamento da prática terapêutica. Em que medida a nossa leitura simbólica se limita somente ao que nos é acessível visualmente?


A construção incomum nas bordas das caixas de areia me fez pensar como Petra inconscientemente está tentando relatar simbolicamente sua própria história, que inclui a presença de duas mães com bebês de natureza tão diferente, e o seu dilaceramento psicoemocional entre duas culturas tão distintas, ou seja, a nepalesa, que viveu de uma forma intrauterina até um ano e meio de idade, e a alemã a partir de então.


Nesta primeira fase da terapia, meu intuito foi sobretudo alcançar uma certa estabilidade emocional para ambas, mãe e filha. O acompanhamento terapêutico se deu num ritmo de uma vez por semana para Petra e a cada quinze dias para a mãe.


Neste período, aproveitamos para escrever, juntamente com a mãe, a história de Petra, em uma forma infantil, com uma certa camuflagem dos nomes e das cenas da sua própria história e combinamos uma sessão de EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing) (com estimulação bilateral), em que esta história poderia ser lida pela mãe. Nesta sessão comum que foi preparada cuidadosamente por mim e pela mãe, nota-se como Petra está pessoalmente agitada. Ao começar a leitura desta história, Petra parece perceber imediatamente que se trata dela mesma e reage impulsivamente. Ela começa a me xingar e querer rasgar o papel que sua mãe estava lendo. Eu continuo mantendo a calma e insisto que a leitura seja feita até o final, com a proposta de deixá-la em uma caixinha como um tesouro, tendo a possibilidade de ser lida novamente caso Petra queira ouvi-la outra vez.


Algumas sessões depois, Petra começa a desenhar espontaneamente a figura abaixo em que diz ser ela mesma o bebê na barriga de sua mãe adotiva, estando ao lado a representação de seu pai.


Com o passar de algumas sessões, a mãe relata que Petra se tornou mais calma e mais carinhosa com ela, e o seu comportamento opositor, embora ainda presente, teve uma mudança considerável.

3 - O núcleo afetivo traumático do abandono


Sofie e as imagens simbólicas de reconstrução da própria biografia


Outro exemplo interessante de núcleo afetivo imagético com conteúdos psicotraumáticos pude presenciar na terapia de Sofie. Ela foi encaminhada ao meu consultório aos sete anos de idade por uma psiquiatra infantil, com indicação para uma psicoterapia analítica. Sofie apresenta hiperatividade, agressão com ataques físicos violentos contra sua irmã um ano e meio mais nova. Esta chegara na familia quando Sofie tinha quatro anos. Além destes sintomas, a mãe adotiva relata que Sofie apresenta uma uma baixa autoestima, referindo-se si mesma como sendo burra e maldosa.


Sofie chegou na sua família como um caso emergencial, com a idade de 13 meses, depois de ter sofrido violência física por parte de sua mãe, que era solteira e psiquicamente muito instável. Foi a vizinhança que alertou o escritório de assistência de proteção às crianças. Sofie foi levada imediatamente para um hospital, para esperar uma família que se dispusesse a se responsabilizar pela sua guarda. Ela chegou ao hospital com várias manchas roxas e teve que receber cuidados de enfermagem. Uma semana inteira foi o período de espera até conseguir uma
família de guarda. Sua mãe, que decidiu adotá-la com a idade de sete anos, relata com lágrimas nos olhos que sua filha, enquanto bebê, estava permanentemente assustada e mexia constantemente com as mãozinhas “como se fosse para se defender”. Até hoje relata que sua filha é muito agitada e às vezes extremamente agressiva.


Sofie foi fruto de uma gravidez indesejada. Seus avós maternos biológicos queriam o aborto, mas o pai biológico se opôs, embora nunca mais tenha se ocupado dela. Durante a gravidez houve a separação dos pais biológicos. Diante desta situação, sua mãe, com o diagnóstico de bordeline, estava emocionalmente sobrecarregada e desesperada.


Na anamnese, sua mãe adotiva relata que sofria de depressão, sobretudo pelo desejo ardente e não realizável de ser mãe. Este foi o motivo porque os pais se propuserem a aceitar as condições de se tornar uma família de guarda, aceitando bebês em dificuldade.


Ambos os pais tiveram uma infância muito difícil. Em criança, a mãe adotiva de Sofie estava sempre muito doente e foi praticamente criada pela avó materna. O relacionamento com sua própria mãe foi descrito como difícil, nunca recebeu carinho e cuidados de sua mãe, que a deixava direto na sua avó.


Sofie se mostra desde o começo muito entusiasmada com as caixas de areia e as miniaturas. Já em sua primeira cena, ela coloca simbolicamente a presença de duas mães diferentes. Nesta época ela ainda tem contato esporádico com sua mãe biológica. Estas visitas são preocupantes porque logo em seguida ela retorna a casa muito inquieta e triste. Sentimentos de culpa, de baixa autoestima e de vergonha da situação familiar são típicos destas crianças. Através desta primeira cena é possível atualizar o tema que a criança está vivendo e verbalizá-lo.


A cada passo que o processo de adoção avança, Sofie se mostra mais agitada.


A partir da trigésima sessão, as miniaturas que correspondem às figuras maternas anteriores são compulsivamente enterradas e desenterradas na areia. A elaboração simbólica pode ser “acompanhada” visualmente. Esta é uma fase de reestruturação de conteúdos psíquicos.

 

Esta fase da regressão terapêutica é expressa igualmente em seus desenhos e cenas de areia cada vez menos estruturadas, de caráter simbólico notoriamente pré-verbal. No consultório, Sofie se torna uma criancinha de dois anos que se ocupa somente com o brincar da areia com a água. Meus sentimentos contratransferências indicam vivências regressivas mescladas com impulsos fortemente agressivos, até então não vividos na terapia. Sobretudo os seus comentários, como “isto aqui tem que virar uma lama nojenta”, são reveladores.


Na sessão seguinte ela descobre no consultório uma cobra de madeira que é muito flexível. Sua brincadeira consiste em colocar a cabeça da cobra em contato com a cauda formando assim um círculo. Em seguida ela se dirige até a caixa da areia molhada e durante toda a sessão, em silêncio e surpreendentemente concentrada, reproduz uma forma urobórica que vivenciou na cobra, modelando-a na caixa de areia (ver a figura abaixo) numa posição central, que corresponde espacialmente à “localização” do vértice ego-Self (E. Neumann).

No início da 39ª sessão, ela quer brincar novamente com a areia molhada e, desta vez, diz que vai fazer a comida para o seu bebê (uma boneca que está na sala de terapia). Esta cena me emociona bastante: ela coloca a boneca na cadeira de balanço e diz que vai fazer uma pizza para seu bebê, com uma expressão muito maternal. Subitamente a brincadeira é interrompida (um sinal do núcleo afetivo traumático) e sua expressão facial muda. Ela se dirige à caixa de areia e retira toda a areia, depositando-a num balde que se encontra sempre ao lado da caixa. Em seguida preenche a caixa de areia somente com água. Olhando para a caixa agora ela se serve de pequenos punhados de areia, fazendo-a fluir na água e formando assim uma pequena ilha do lado esquerdo da caixa, o primeiro quadrante da caixa, que equivale simbolicamente ao aspecto da função intuitiva e mais inconsciente.

Dirigindo-se à prateleira, descobre uma cachorrinha com seus filhotes e os coloca na ilha construída. Em seguida coloca um barquinho na água. Sofie se mostra completamente absorvida pela brincadeira, mas subitamente sua expressão facial muda. Em um impulso rápido ela pega um filhotinho e o coloca do outro lado da caixa sozinho,  com os olhos para a parede da caixa, quase que como “encurralado”. E diz: “pronto”. Esta é a palavra chave que combino com as crianças para avisar que a cena construída esta finalizada. Normalmente as cenas são construídas em silêncio.


A mudança brusca de sua brincadeira e a mímica rígida que a acompanha se revelam como indicadores de um núcleo afetivo psicotraumático. A visão da cena com o cachorrinho rodeado de água no canto mais distante da caixa, de onde nenhum movimento parece possível, provocam-me um forte calafrio e uma sensação enorme de isolamento. Minhas sensações contratransferências são de um nível corporal tão intenso que por instantes elas me emudecem. Logo depois, é como se eu visse na minha imaginação e em minhas associações este feto abandonado e indesejado que faz parte da história de Sofie! Eu me pergunto, quais foram os mecanismos psíquicos que impulsionaram Sofie a construir tal cena e, desta forma, se identificar visivelmente com este filhotinho abandonado no meio da água e sem possibilidades de evasão? Depois de alguns minutos eu me recomponho e pergunto a Sofie: “O que está acontecendo com o filhotinho? E ela me responde: “A mamãe não consegue mais encontrá-lo”. Diante de conteúdos tão traumáticos, uma intervenção verbal se torna imprescindível e eu digo: “Um bebê sozinho não consegue sobreviver sem sua mamãe... ele precisa urgentemente de uma mamãe! Mas se a mamãe não consegue encontrá-lo, então temos que arranjar uma outra mamãe para ele”.


Sofie me olha sem palavras e confirma com sua cabecinha.


Forte sentimento de abandono revestido de ilusão de autonomia, ou seja, negação de suas próprias necessidades, são típicos em crianças adotadas ou órfãs. O fato de um bebê não poder sobreviver sem a mãe ou uma cuidadora não pode ser mentalizado por Sofie. Esta cena mostra claramente como o núcleo afetivo traumático se atualiza. A intervenção verbal “corrigindo” certos padrões patológicos de pensamento se faz necessária para favorecer o processo de mentalização e autorregulação.


Cerca de um mês depois, sua mãe adotiva me transmite a notícia que os pais biológicos de Sofie concordaram com o processo de adoção. Logo no início da sessão, Sofie me diz, contente, que ela vai receber um novo nome.  Nesta sessão ela cria uma cena de areia que tem uma certa semelhança com a anterior, mas com uma dinâmica completamente diferente: ela tira novamente toda a areia da caixa e derrama muita água formando logo em seguida uma ilha, mas desta vez na esquina diagonalmente oposta, no quarto quadrante, que simboliza a relação pessoal materna. Em vez de um cachorrinho perdido e solitário, aparece, como figura de projeção do ego, um esquilo sorridente que atravessa uma ponte em direção à ilha. Do seu lado se encontra um barquinho ancorado (símbolo da autonomia). A figura pessoal, ao contrário da cena traumática anterior, não se encontra sozinha e abandonada, mas sim sendo esperada pela raposa azul que lhe acena as boas-vindas!


Nesta cena, o símbolo “ponte” se revela fundamental: este elemento de conexão nos indica que agora uma comunicação se tornou possível. Do ponto de vista da psicologia pré-natal, a ponte poderia ser vista metaforicamente, ao mesmo tempo, como um cordão umbilical que reconecta o feto com a placenta e, num outro
contexto, como o canal vaginal que se dilata para a preparação do parto. Seria esta uma forma imagética de simbolizar o seu nascimento no nível arquetípico, tendo em vista o processo da adoção e a presença de uma outra mãe? Mas, sobretudo é importante se perceber que estas imagens trazem à tona (diferentemente da cena anterior) uma forma imagética em que Sofie (a figura do ego, aqui o esquilo) não se encontra mais isolada, mas é vista e esperada no final da ponte pela figura materna da raposa, que lhe acena com os bracinhos em sinal de boas-vindas, uma representação de fortalecimento do vínculo e de atendimento às necessidades básicas de segurança.


Na 46ª sessão, ela começa a tocar o xilofone. Como em geral criamos musicalmente muitas histórias juntas, hoje ela parece querer “contar sua própria história” e começa: "Era uma vez uma tempestade, a casa foi queimada, mas logo chegou os bombeiros e a vovó também estava lá.” “Não”, corrige, “ela morava em outro lugar".


Sua ferida profunda do abandono é colocada agora simbolicamente no nível verbal, equivalendo a casa ao símbolo de proteção em si, a representação imagética do ego. Desta vez, além do resgate (bombeiros = enfermeiras do hospital) ela não se encontra mais sozinha, a vovó (mãe adotiva) também faz parte da cena. Notar que ela, em seus 50 anos, poderia também ser sua avó e que a mãe adotiva foi também criada pela sua avó.

Sofie é muito criativa e depois desta introdução musical quer modelar um boneco de neve em argila. Na sessão seguinte ela escolhe a cor verde para o seu boneco de neve (a mesma cor de seus proprio olhos) e o completa amorosamente “contra o frio” com um lenço vermelho e um chapéu preto. Daqui por diante, este boneco de neve (sua autorrepresentação) é quase sempre utilizado em suas cenas, sendo que ele inúmeras vezes é submerso na areia e novamente redescoberto: é uma fase de reestruturação psíquica.

Na 81ª sessão, ela enterra o bonequinho de neve (a figura projetiva do ego) várias vezes e o desenterra novamente até ficar satisfeita, deixando só a cabecinha do boneco aparecer. Juntas, olhamos esta cena e eu lhe pergunto como o boneco de neve está se sentindo agora? Ela responde “agora ele está contente” e sai da sala com um sorriso satisfeito.


Muito mais tarde, ao olhar para a foto desta imagem de areia, descobri que, ao girá-la na direção vertical, uma figura feminina de forma inconsciente emerge: é possível se ver claramente a cabeça, os olhos, o nariz, o pescoço, os cabelos laterais e um corpo. Sofie colocou o seu boneco de neve, inconscientemente, exatamente no meio do ventre, como que recompondo a sua história no nível arquetípico, e como se os olhos do feto se encontrassem imaginariamente com o símbolo da Grande Mãe...

Conclusão


As imagens arquetípicas podem ser compreendidas de uma maneira mais ampla se levarmos em consideração que a criança pré-natal muito precocemente é interativa no meio uterino e, portanto, tem a capacidade de internalizar suas vivências de uma forma implícita. Hoje a neurociência confirma a existência de uma memória celular. Sendo os psicotraumas dos períodos pré e perinatais inacessíveis ao nível verbal, são armazenados como engramas ou núcleos afetivos traumáticos, sob a forma de memórias corporais, sensações, sentimentos, imagens oníricas ou formas visuais, e podem ser acessados como desenhos ou cenas de areia. Considerar a realidade pré-verbal como parte imprescindível do tecido biográfico nos abre novas “janelas” para a compreensão mais rofunda dos pacientes.


O questionamento direto e aprofundado das experiências pré e perinatais na anamnese e a consideração dos traumas transgeracionais como uma herança psíquica nos remetem à necessidade de estender a leitura simbólica a níveis correspondentes ao período pré-verbal. Desta forma, a caixa de areia se apresenta, hipoteticamente,  como um espaço metafórico de vivências uterinas, como um vaso alquímico onde o núcleo afetivo traumático pode ser projetado diretamente e compreendido simbolicamente, levando em consideração elementos biográficos até então inacessíveis no âmbito verbal e que, por esta razão, não puderam ser integrados. Gostaria de concluir este artigo com uma citação do livro As origens da alma (Wie die Seele entsteht):

Podemos pensar o desenvolvimento humano como uma sucessão de horizontes transformadores, do embrião ao feto e do recém-nascido à criança pré-verbal, da criança escolar até a púbere e do jovem adolescente até a idade adulta. Cada nível de desenvolvimento acarreta seu próprio mundo complexo de experiências que se sobrepõem e interagem dinamicamente nas próximas etapas da vida” (Janus, 1997, p. 69).

Nota


1 - Este ponto de vista se torna de extrema importância porque a descoberta da nossa memória implícita é efetuada muito posteriormente com o desenvolvimento das neurociências.


Desenhos e imagens das cenas de areia utilizadas com permissão.


Recebido em 25 de maio de 2018. Aprovado em 14 de junho de 2018.


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